13 abril 2016

Yeshuah - A visão de Laudo Ferreira



Com o advento do lançamento da edição completa de seu premiado quadrinho “Yeshuah”, o roteirista, quadrinhista e multifacetado artista Laudo Ferreira ganha os holofotes mais uma vez. Aproveitando a oportunidade resgatamos para o Portal dos Quadrinhos esta importante entrevista concedida pelo artista à jornalista Luciana Porfírio na revista “Publish” em 2010. A revista Publish, uma das mais conceituadas no ramo gráfico brasileiro fez uma entrevista bem aprofundada sobre o trabalho de Laudo para a confecção da Saga “Yeshuah” e seu trabalho como artista. Nós consideramos essencial que mais leitores a conhecessem. além da mídia impressa, assim resgatando mais um importante capítulo da história da Hq Brasileira.

transcrição por Ed Oliver


"História em forma de Quadrinhos" in Publish 110 / 2010 


Detalhe da capa de Publish - 2010
Conheça a trajetória do ilustrador Laudo Ferreira Jr, que dedicou dez anos à pesquisa e produção de uma das sagas mais conhecidas da História.
“Um apaixonado pelos desenhos e por história. Assim é Laudo Ferreira Jr., desenhista e roteirista que dedicou dez anos à saga em uma trilogia de histórias em quadrinhos. Hoje seu segundo volume, chamado de “O Círculo Interno e o Círculo Externo”, Yeshuah ( Jesus em hebraico) mostra um dos nomes mais enigmáticos de todos os tempos um pouco mais despojado do que os textos canônicos e mais humano, com sentimentos que o aproximam de um homem comum.

Nesta entrevista, Laudo comenta sobre outros trabalhos ligados à história, além de contar um pouco sobre o início de sua carreira, que teve como um dos destaques uma adaptação para os quadrinhos do filme “À meia-noite levarei a sua alma”, de Zé do Caixão. Esse trabalho levou-o a faturar o troféu HQMix de melhor Graphic Novel nacional, em 1996. Em 2009, o ilustrador venceu novamente o HQ Mix, desta vez como melhor edição Especial Independente pela minissérie policial “Depois da meia-noite”. Laudo ganhou ainda o Prêmio Ângelo Agostini de melhor desenhista (2008 e 2009) e melhor Roteirista (2010). Confira.

O que significa o desenho em sua vida?
Laudo - Desenhar é meu ofício. Penso em desenho o dia todo. Na verdade é difícil explicar, pois rabisco desde muito pequeno, nem me recordo quando comecei. Rm especial, fazer quadrinhos, que é minha paixão, é minha forma de mostrar um pouco do que penso sobre as coisas da vida e do mundo.

Quando percebeu que tinha aptidão para desenhar?
Laudo - A recordação mais viva que tenho é de rabiscar as revistas dos meus pais, porém, não me recordo se eles brigavam comigo por isso. Esses rabiscos eram historinhas sequenciadas de coisas que eu era fã na época, coisas comuns à criançada do início dos anos 70: filmes de caubói, super-heróis ou cópias de heróis dos gibis como Flash Gordon e Mandrake.

Você é autodidata?
Laudo - Sim. Como disse, comecei bem pequeno. Foi uma professora de primário quem primeiro notou meu jeito para a coisa e notificou minha mãe. Ma ocasião, ela sugeriu que estudasse desenho com uma professora amiga dela, artista plástica. Ao contrário de hoje em dia, que existem várias escolas e cursos de desenho, naquela época era raro. Lembro-me que essa professora de desenho era uma senhora muito séria e só ensinava na base de “risquinhos ali para ligar aqui”.
Devo ter ido a uma aula apenas  e desisti, pois achei muito chato. O bom foi que meus pais concordaram com minha vontade, então fui estudando sozinho, vendo muito quadrinho que caía nas mãos, copiava o trabalho de alguns desenhistas de quem eu era, e ainda sou fã. Já adolescente, comecei a ver materiais de grandes mestres da pintura e ilustração. E por fim, já quando comecei a dar meus primeiros passos profissionalmente, a convivência com profissionais de desenho, conversar e vê-los produzindo ali “ao vivo e em cores” foi primordial para minha iniciação e formação.

Quais Profissionais você admira?
Laudo - Muitos. Desde grandes mestres da arte sequenciada mundial como Alex Raymond, Will Eisner e Moebius, até mestres da pintura como Egon Schielle e Klimt. 
Há os nacionais fundamentais, como Angeli, Laerte, Nico Rosso, de quem sou fã absoluto desde molecão; Julio Shimamoto e Spacca, que além de serem grandes mestres e referências, tenho a honra de ser grande amigo deles e muita gente mais novaque está aparecendo e que também se tornou influência.
Tianinha - A Musa das Hqs eróticas

Como surgiram os seus primeiros trabalhos?
Laudo - As primeiras coisas publicadas foram no início dos anos 80 através da Editora Press. Foi muito material pornô e um pouco de terror. Mas o que me deu mais gás foi participar de fanzines e revistas independentes que circulavam por todo o país. O Movimento fanzineiro deste período foi muito forte e gerou uma leva de caras como Gazy Andraus, Flavio Calazans, MZK, Daniel HDR, Thais Linhares, gente que está produzindo cada vez mais.

Quais trabalhos tiveram maior repercussão?

Laudo - Entre 1995 e 1997 publiquei algumas HQs com o personagem Zé do Caixão, a mais conhecida foi uma Graphic Novel com a adaptação do filme “À meia-noite levarei a sua alma”, primeiro filme do personagem. Muita gente ainda hoje se lembra dessa fase e vez ou outra quando apareço em algum evento de quadrinho, sempre vem alguém com essa revista. Há também a personagem Tianinha, com a qual trabalhei nove anos produzindo duas séries de HQs eróticas para as revista Total e Premium. 
Esse período foi de um tremendo aprendizado de como trabalhar dentro de uma produção seriada mensal para uma editora e como perceber o gosto do publico leitor.
A personagem fez um grande sucesso ao ponto de em três edições especiais, chegar a vender a vender mais que Homem- Aranha e Super Homem, por exemplo, e isso por si basta. Costumo dizer que, nesse caso a Tianinha, foi a personagem que fez sucesso e não necessariamente seu criador. Mas sem problemas, pois, no final, estava tudo no pacote.

Conte-nos um pouco sobre o livro Yeshuah. Como surgiu a idéia de contar a história de Jesus em quadrinhos?
Laudo - Primeiro, não sou religioso dentro destes padrões que estão por aí, mas sou uma pessoa de espiritualidade muito forte e há anos pratico alguns trabalhos e vivências que só tem me tornado mais ligado a coisas internas e sagradas. Alguns trabalhos anteriores, como a mini-série “Depois da meia-noite” tinha umas pitadas de questões espirituais, mesmo se tratando de uma HQ policial. Comecei a trabalhar nos primeiros estudos desta HQ no final dos anos 1990 e em 2000 parti para a produção definitivamente: desenhando e escrevendo o roteiro quase que simultaneamente. Embora essa linha de trabalho não seja a mais viável, e nem é o meu costume trabalhar assim, nesse caso tornou-se fundamental.

A primeira intenção foi contar uma história de Jesus dentro de uma visão humana, sem, no entanto, tirar o espiritual, porém a intenção seria despi-lo dos dogmas da igreja católica. Houve uma primeira preocupação também que a narrativa fosse linear e não blocada, como é comum em versões da vida de Jesus em quadrinhos católicas, pois além de trabalhar na figura de Jesus, lado humano e psicológico, também queria trabalhar com outros personagens secundários e também importantes dentro da história, como Maria, Maria Madalena, Pedro, Tiago, entre outros.
Contando de um jeito bacana que envolvesse o leitor e que, de certa forma, o fizesse esquecer que se tratam de ícones religiosos.

Trata-se de uma grande saga humana e espiritual antes de tudo. Esse raciocínio para mim é importante e acho fundamental que os leitores enxerguem por aí també, e não só como “uma história de Jesus”.
Dividi essa saga em três partes, duas já publicadas: “Assim em cima, assim embaixo” lançada em 2009, “O Círculo Interno e o Círculo Externo”, lançada este ano, e a terceira parte que ficará pronta para o segundo semestre do ano que vem.

*Nota do editor: (Claro que como vão perceber a entrevista foi feita antes da terceira parte da história ter sido lançada, ela veio então em Maio/2014 com o título de “Onde está tudo?” e em Abril/2016 a editora Devir lançou uma mega edição reunindo os 3 Volumes e com extras).

Fisicamente, os personagens da história parecem bem diferentes do que os retratatdos em quadros e filmes religiosos. Como foi a sua pesquisa para compor os personagens?
Laudo - Desde o princípio quis descaracterizar de clichês que temos por aí e que já existem há séculos. Primeiro que por se tratar do povo judeu, de gente viveu em áreas áridas, secas e na maioria eram pobres, a visão precisaria ser despida de vícios.
O caso da imagem do próprio Jesus foi algo muito difícil de encontrar na minha versão, pois há certas coisas que já estão enraizadas no nosso DNA, mesmo que não se creia, não importa.
Mesmo tirando a possibilidade do homem loiro, de olhos azuis, a visão de longos cabelos e barbudo é difícil de fugir. Como pesquisei muito para escrever o roteiro para que ele de certa forma tivesse algum embasamento tanto no fator histórico quanto nos textos apócrifos, cheguei até a um entendimento do porquê dessa imagem, qual sua origem, visto que os hebreus não tinham a tradição de fazer retratos então, supostamente, não se teria alguma possibilidade de ter o verdadeiro rosto de Jesus.

A origem deste rosto que temos vem justamente do Santo Sudário que originalmente era exibido nas catedrais todo dobrado e só deixando o rosto do sudário em exibição. 
No caso do “meu” Jesus, depois de muitos estudos, acredito ter rascunhado uns duzentos rostos, achei uma base no filme “Evangelho segundo São Matheus”, do cineasta Píer Paolo Pasolini de quem sou grande fã. Não me baseei completamente no ator que interpretou Jesus, mas usei algumas características diretas ou indiretas para compor o rosto da minha versão de Jesus. 
Agora, casos como da Maria Madalena, para ser franco, não fugi muito do padrão “mulher de cabelão solto”, pois isso me agrada e me agradou a versão que fiz dela.

Como encarou as críticas em relação ao livro?   
Laudo - No geral tive críticas ótimas em relação ao primeiro volume e esse segundo parece que vem no mesmo caminho. Pareceu-me que a crítica especializada e os leitores em geral entenderam qual é a ideia dessa grande saga. Claro que alguns seguimentos religiosos criticaram a HQ em alguns pontos. Houve um caso de uma leitora que achou um “ultraje” a forma que apresentei Maria, mãe de Jesus, no primeiro volume, como uma moça fraca e indefesa. Respondi que na verdade não estava desfazendo da imagem de Maria, pois, na realidade, ela era a heroína do primeiro volume, que passa por todo um processo até entender qual a sua participação numa história maior que estava começando. É importante dizer que muitos evangélicos e religiosos aceitaram e gostaram dessa minha versão.
A ideia não é jamais polemizar sobre Jesus. Isso é bobagem, pois hoje em dia cria uma polêmica com sua imagem. A intenção é humanizar sua história, mas sem perder o caráter espiritual, divino. O sagrado e humano juntos.

Você já desenhou quadrinhos sobre a inconfidência Mineira, Jesus e no ano que vem desenhará sobre o Descobrimento do Brasil. Pode-se dizer que você se tornou um especialista em desenhos de história?
Laudo - Pois é, fiz Revolução Russa também e mais algumas coisas por aí. No momento faço uma adaptação em quadrinhos do texto clássico do Gil Vicente “Auto da Barca do Inferno” e começo, até final do ano, a trabalhar no álbum “Histórias do Clube da Esquina”, um quadrinho meu selecionado no ProAc de Quadrinhos da Secretaria de Cultura de São Paulo de 2010. Curiosamente, tudo de forma misturada, História, literatura, música e religião. Esses temas sempre me interessaram. As artes, as religiões contam a história do povo, da raça humana e essa questão do ser humano e suas dimensões de possibilidades me interessaram e aí não importa se trata de um épico como “Yeshuah”, um texto clássico como “Auto da Barca do Inferno”, ou mesmo algo mais didático, como a história do Descobrimento do Brasil.

Como você faz os seus desenhos: no computador ou prancheta?
Laudo - Inicialmente tudo no papel e à mão: lápis, lapiseira e a arte final com nanquim, pincéis, bico de pena e canetas descartáveis. O Omar Viñole, meu parceiro de estúdio, quando arte-finaliza meus desenhos vai dentro desse esquema também. Quando trabalhamos com colorização, digitalizamos o original e o Omar colore no micro. Geralmente utilizamos o Photoshop e mais recentemente um programa chamado Paint Tool para algumas ilustrações. Mas a base de tudo, o desenho vai primeiro no papel. 

Há quanto tempo surgiu o estúdio Banda Desenhada e que tipos de trabalhos fazem?
Laudo - Atuamos desde 1996. Trabalhamos basicamente com o mercado publicitário e editorial: ilustrações para revistas, livros e material para campanhas publicitárias e empresariais.

Que dicas daria para quem quer trabalhar como desenhista?
Laudo - Estudar muito. No caso dos quadrinhos, conhecer os grandes mestres do traço de todas as eras, mas também conhecer artes em geral, pintura, escultura, teatro, enfim, artes.
Ler muito e não só gibi, pois, na verdade, o grande artista não se forma só na técnica do bom traço, mas no conhecimento principalmente. Persistência, foco, objetivo, disciplina e nunca se julgar o bom, o que chegou lá, pois há uma lição: quando se chega ao topo da montanha, depois do êxtase, você vai vislumbrar que há outras montanhas maiores que aquela que escalou. O conhecimento e o aprendizado nunca cessam.


* As imagens são exatamente as originais usadas na revista, mantivemos as mesmas para preservar o valor histórico da entrevista.

Laudo Ferreira Jr.

     
Curiosidades:

1- O terceiro volume que completa a trilogia, e na época da entrevista ainda não estava pronto se chama "Onde Tudo Está" :


2- O primeiro nome pensado por Laudo Ferreira para a saga seria "Ele".

3- Confira abaixo o volume condensado com os 3 volume da saga, lançado pela Devir este ano :


Os detalhes da edição condensada você confere AQUI!

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